AMPLIFICANDO THE MATRIX
Autor: Ricardo Kelmer

Neo e a individuação

Para o pesquisador suíço Carl Jung, o grande sentido da vida é a individuação: processo de profundo autoconhecimento onde tomamos a coragem de nos confrontar com velhos medos e o que desconhecemos de nós próprios. Uma vez que alguém se entrega a esse caminho nada racional, sua vida parecerá ser magicamente conduzida por uma sabedoria maior que Jung denominou Self (o Si-mesmo), o centro de cada um de nós. Individuar-se significa fazer o ego (a consciência da superfície) ir ao encontro desse centro ordenador. Representa separar-se da massa, do turbilhão inconsciente e adquirir autonomia, tornar-se uma totalidade psicológica, una e centrada, sem divisões internas, autoconsciente: um in-divíduo. Este é o caminho para a personalidade total e a buscada realização pessoal. Para Jung, o futuro da humanidade dependerá diretamente da quantidade de pessoas que conseguirem se individuar.

Como se vê, o personagem Neo simboliza perfeitamente a teoria da individuação junguiana. Neo está adormecido e vive na realidade virtual de Matrix. Um dia uma outra realidade começa a se inserir em sua vida, em seus pensamentos e ele já não pode deixar de lhe dar ouvidos. Começa então a questionar o mundo em que vive ao mesmo tempo em que certos elementos do novo mundo lhe parecem absurdos. Enquanto o novo o fascina e o atrai, o velho mundo acena com suas velhas e seguras certezas. Está estabelecido o conflito. Neo nega o novo uma vez e se entrega às autoridades. Mas as autoridades o subestimam e o deixam vivo, pondo-lhe um rastreador para que ele os leve até o líder Morpheus. O novo lhe dá uma segunda oportunidade mas ele resiste e pede para descer do carro. Os personagens que então representam o novo têm de ser mais enérgicos e, de arma apontada contra a cabeça, Neo é obrigado a deixar-se "desrastrear-se". Depois, no auge de seu sofrimento psíquico, ao lhe ser exposta a verdadeira realidade, Neo ainda reluta mais uma vez em aceitar a transformação mas já é tarde: uma vez transposta a fronteira, não há mais volta.

Não é fácil o processo de autoconscientização. Conhecer a si mesmo requer coragem, perseverança e honestidade. São muitos os obstáculos que surgirão durante a jornada. A maioria dos que são instigados a mergulhar em si mesmos terminam desistindo ante os primeiros desafios e retornam depressa às velhas seguranças das certezas conquistadas: o velho mundo, mesmo com todos os seus defeitos, é melhor que um mundo novo e desconhecido. Mudar sempre requer disposição para reconhecer os próprios defeitos e isso dói. Dói despregar-se daquilo em que sempre acreditamos. Dói perceber que na verdade não somos perfeitos, que temos defeitos e que, se quisermos prosseguir, temos de nos livrar deles. O autoconhecimento é doloroso mas é a única estrada que pode nos levar à realização pessoal mais verdadeira.A recompensa por tantas dores é o poder que recebemos ao realizar toda nossa potencialidade adormecida e a liberdade por nos livramos de velhos grilhões que tanto nos limitavam.

Neo está insatisfeito com sua vida e vê surgir a grande oportunidade que sonhava. Vê que sua intuição lhe falava a verdade. Conhece novas pessoas e novas idéias que a princípio parecem absurdas. Aos poucos habitua-se ao novo mundo mas esse processo é doloroso e ele várias vezes pensa em desistir. Com o passar do tempo vê aflorarem novas forças e habilidades e vai se sentindo cada vez mais confiante. No entanto, crer que é o Predestinado de que fala a Profecia já é demais para ele. Quando consulta o Oráculo, Neo está confuso e o Oráculo apenas lhe devolve suas dúvidas. Quando, porém, Morpheus é preso, percebe que ele precisa salvá-lo. Então enche-se de coragem e uma súbita autoconfiança brota de dentro dele. Neo retorna a Matrix e consegue salvar Morpheus. No entanto o mais difícil ainda está por vir: salvar a si mesmo. Para isso precisa enfrentar sozinho os maiores perigos e testar-se às últimas consequências. E é aí que ele falha. E morre.

Só mudamos se não estivermos satisfeitos, com a roupa, o carro, o trabalho, a faculdade, as companhias. Se não, por que mudar? Quando nossos valores começam a ficar obsoletos e as verdades em que críamos já não nos servem, a vida nos impõe a transformação. Algo nos diz que tem alguma coisa errada em nossa vida mas não sabemos precisar o que seja. Aos poucos certos indícios se apresentam e já não temos como esconder de nós mesmos: o caminho está à frente e ele nos pede uma confirmação. A vida nos fará passar por inúmeros testes, nos apresentará pílulas azuis e vermelhas. Precisamos estar atentos para seguir as pistas. Nesse momento surgem os autoboicotes, tão comuns. Fingimos não ver. Fugimos de um exame de consciência e refugiamo-nos em velhas verdades. Várias vezes o novo se apresentará e o velho nos chamará de volta, deixando-nos incomodamente esticados entre dois pólos que nos querem a todo custo. Esse é sempre um instante delicado pois se continuamos nos recusando a enfrentar a verdade, a vida chegará a um impasse insuportável e seu curso natural será barrado. Vêm daí as doenças e os fracassos como forma de nos obrigar a uma interiorização, para repensar e retomar o rumo.

Neo morre. E renasce para uma nova vida. Renasce inteiro, mais forte, mais capaz. Ele agora enxerga o mundo de uma maneira diferente: ele vê as coisas como realmente são, sem filtros, sem disfarces. O velho mundo já não pode enganá-lo com suas meias verdades e dissimulações. Neo teve de morrer para que os últimos resquícios de um velho e obsoleto Neo sumissem de vez. Da mesma forma teremos de morrer muitas vezes durante a vida, sempre que necessário. Velhos aspectos da personalidade, que já não nos servem mais, terão de dar espaço a novas forças. As transformações são terríveis - mas somente enquanto as olhamos deste lado de cá, do lado do velho mundo. Depois que ultrapassamos o medo de vencer e de ser o que na verdade sempre fomos, a transformação revela-se um nascimento onde passamos a olhar a vida com verdades mais abrangentes e mais úteis. Continuamos os mesmos mas com uma diferença: sabemos exatamente quem somos. E é esse detalhe que nos distinguirá dos demais. Olharemos para trás e perceberemos que todas as quedas, os traidores e as dificuldades foram necessários, nada foi em vão. Perceberemos que todos foram necessários em nossa jornada, os que acreditaram em nós e os que nos traíram, cada um em seu papel, e que tudo sempre esteve interligado. É como se uma força poderosa e invisível estivesse o tempo todo na condução dos fatos, confiando em nós. Há quem chame essa força pelo nome de algum deus, de Tao, ritmo do Universo, destino, Self. Chame como quiser. Essa força existe e aguarda apenas que você, como predestinado que é, decida despertar de vez. (rk)

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