AMPLIFICANDO THE MATRIX
Autor: Ricardo Kelmer

O traidor: um autoboicote

Logo nas primeiras aparições de Cypher, o espectador sente que ele destoa dos demais integrantes da equipe de resistentes. Por algum motivo ainda obscuro, ele não parece muito confiável. Quando Trinity deixa o jantar de Neo, que ainda está se recuperando, Cypher a aborda na saída do quarto e comenta, com uma ponta de ciúme, que ela nunca havia feito isso para ele. Nessa e em outras cenas, Cypher parece estar sempre testando a crença de Trinity no Predestinado, coisa em que ele não crê.

O comportamento de Cypher vai intrigando o espectador até o momento em que finalmente fica claro que ele é um traidor. Na cena em que ele está num restaurante a negociar com o agente Smith a entrega do líder Morpheus, ficamos sabendo que ele cansou da vida de resistente e tem saudade da realidade virtual da Matrix, onde pode, por exemplo, degustar uma picanha mal passada como a que saboreia naquele momento. Ele exige condições para entregar o líder: quer ser inserido de volta na Matrix como alguém muito rico e famoso e mais: não quer lembrar de nada. O agente concorda, satisfeito.

A traição de Cypher é um dos fatores cruciais de toda a trama do filme "Matrix". Ele é a traição que nasce de dentro da própria resistência, mostrando com isso que aqueles que lutavam pela liberdade da espécie humana não eram seres perfeitos, não eram santos - eram seres humanos como os outros, com seus defeitos. Cypher não partilhava na crença no Predestinado. Pensando bem, era meio absurdo imaginar que alguém pudesse derrotar a tão poderosa Matrix e que esse salvador nasceria dentro dela própria. Cypher está cansado de comer alimentos sem gosto, de viver desconfortavelmente, fugindo e se escondendo, de lutar por algo que considera inútil. Ele está revoltado com todo o estado de coisas e, mesmo sendo um dos que conseguiram despertar, já não tem forças para continuar resistindo. Some-se a isso o interesse velado de Cypher por Trinity, seu ciúme por sabê-la apaixonada por Neo e pronto, a traição tem todos os ingredientes para se consumar.

Cypher é o Judas de "Matrix". O espectador é levado a desprezá-lo como o traidor que de fato é mas observe-se que sem ele não haveria final feliz. Cypher e sua traição são necessários para que Neo finalmente se convença de que é o Predestinado. Se Morpheus não houvesse sido entregue, Neo não teria porque retornar a Matrix, arriscando a vida pelo amigo. É arriscando sua própria vida que Neo atinge mais um nível em sua autoconscientização. É voltando aos perigos da Matrix que Neo enfim pode se experimentar em toda sua potencialidade e cumprir o que havia profetizado o Oráculo: que ele morreria e que na outra vida seria o Predestinado. Sem a traição de Cypher nada disso poderia ocorrer.

No livro "Encontro marcado", de Fernando Sabino, o protagonista diz para o diretor do colégio, um padre, que o grande medo de Jesus Cristo era que Judas não o traísse porque se ele não o fizesse, como Jesus cumpriria seu destino de Salvador? Sem a traição de Judas, Jesus teria que tentar outros meios de se fazer preso, ser julgado culpado e condenado a morrer na cruz. Imaginando-se o drama pessoal de Jesus, observa-se que ele no fundo desejava que Judas fizesse sua parte na história, traindo-o e fazendo correr naturalmente os acontecimentos dolorosos que viriam. O que seria de Jesus sem Judas? O que seria do cristianismo sem o beijo entreguista de Judas? Esse é um dos paralelos de 'Matrix" com a mitologia cristã.

Em "Matrix" pode-se enxergar o drama de Cypher mais profundamente ainda. Ele simboliza o componente de autoboicote da Psique, aquilo que nos impele a voltar para antigas e cômodas certezas, que tem medo de arriscar, que cansa de lutar pelo que acredita. Cypher existe em todos nós: é a força retrógrada em eterno combate com as forças progressistas. De onde pode vir a traição senão de dentro de nós mesmos? Isso nos faz lembrar que o grande inimigo a vencer não se encontra lá fora: ele está dentro de cada um de nós e é mais poderoso que toda uma Matrix pois age no silêncio e na dissimulação dos nossos medos e bloqueios mais íntimos - e que não enxergamos. Não enxergamos porque preferimos não ter de encará-lo, assim é mais cômodo. Porém, há sempre um preço a pagar quando insistimos em não olhar para aquilo que nos chama atenção em nós mesmos. Tudo que rejeitamos na Psique cresce silencioso: esse é o pior dos inimigos. Um dia ele se apresentará tão forte que não haverá como deter sua traição. Por isso os terapeutas insistem na necessidade do autoconhecimento - ele ainda é a melhor prevenção contra os Cyphers da vida. A propósito, não sei se você percebeu que Cypher lembra a palavra Lúcifer... (rk)

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